Texto escrito pelas companheiras Tatianny Araújo e Rejane Hoeveler para o Blog Junho.
Disponível no link : http://goo.gl/KqEnXr
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Na mesma semana em que víamos, chocados,
diversos homens adultos assediando uma menina de 12 anos nas redes
sociais, em mais um exemplo da cultura de estupro enraizada em nosso
país, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovava, por
37 votos contra 14, o Projeto de Lei (PL) 5069/2013, de autoria do
deputado Eduardo Cunha, que altera o entendimento sobre o que se
considera violência sexual. O projeto, encaminhado ao plenário na
Câmara, muda a legislação sobre o tema, que desde 1940 permite o aborto
em caso de estupro, e aumenta consideravelmente a criminalização da
prática do aborto, negando às mulheres não apenas o direito a decidir
sobre seu corpo, como também o direito humano básico a receber
atendimento e orientação dos profissionais da saúde.
A pílula do dia seguinte e a proibição de atendimento às mulheres na rede pública
Hoje, a pílula do dia seguinte pode ser
encontrada em farmácias e usada para profilaxia da gravidez, evitando
assim, gravidez indesejada, seja pelo sexo consentido ou não. O projeto
de lei prevê maior controle por parte do Estado de substâncias tidas
como abortivas, e, embora ainda não preveja diretamente a proibição
completa do uso da pílula do dia seguinte, obriga a que ela só seja
indicada em casos comprovados de estupro, isto é, depois que a mulher
fizer notificação policial e exame de corpo delito.
Como a lei 12.845/2013 garante
atendimento integral no SUS, elas hoje podem ir diretamente à uma rede
de atendimento médico público, onde lhe é garantido a pílula do dia
seguinte, exames de doenças sexualmente transmissíveis, orientação e
cuidados. Não é preciso comprovar via notificação à polícia a violência
sexual para ter garantia de atendimento. Devido à responsabilização da
vítima, ao péssimo atendimento e humilhações, muitas vezes à falta de
apoio da família, no caso das meninas e adolescentes, e também à
realidade de que muitas vezes nada acontece com os agressores, muitas
mulheres não denunciam a violência sexual sofrida.
O bom atendimento – que não é garantido
em toda rede SUS do país, e isto já é um entrave – aumenta em muito as
chances da vítima a se sentir pronta para a denúncia. Se isso se
inverte, é evidente que teremos um número ainda maior de casos
desconhecidos e, muito provavelmente, a ampliação da violência sexual
contra a mulher, pois os agressores terão aumentada a certeza de que
poucos serão denunciados. A maior parte das mulheres que sofrem
violência sexual são meninas e jovens, vítimas de seus próprios
familiares, na maioria dos casos. Elas não denunciam, e, com isso,
estarão impedidas de evitar gravidez ou abortarem quando grávidas de
seus algozes.
O PL obriga que o Boletim de Ocorrência
(B.O.) e o exame de corpo de delito sejam obrigatórios para que a mulher
possa ser atendida no SUS. Assim, exige-se como primeiro passo aquilo
que deveria ser o último, pois é sabido que a mulher precisa se sentir
segura, receber um bom atendimento, que seja humanizado e com equipe
multidisciplinar, para se encorajar a fazer a denúncia. Ou seja, aquela
mulher, menina ou adolescente que foi violentada, e que está
extremamente vulnerável emocionalmente, terá que “provar” que foi
violentada, encarando um exame de corpo de delito (numa delegacia que
frequentemente não a acolhe devidamente), para, quem sabe, ter algum
atendimento médico…
Maior criminalização, em especial dos profissionais de saúde
Com o projeto, as penalidades relativas à
prática do aborto aumentam significativamente. “Induzimento,
instigação, orientação ou auxílio ao aborto” são tipificados como crime
penal. Além disso, há mudanças profundas no que tange o acesso à
informação. O projeto prevê que ninguém possa dar informações às
mulheres, mesmo quando é sabido que ela irá fazer o aborto de qualquer
forma, fazendo com que qualquer informação vire delito, seja ela feita
por profissionais de saúde, movimento de mulheres, amigas…todos agora
passam a ser tipificados a ponto de sofrer penalidades![1] Isso causará, imediatamente, um aumento exponencial de problemas decorrentes de abortamento clandestino, que já são alarmantes.
Para os profissionais de saúde as penas
serão maiores, fazendo com que não se possa contar com os agentes
públicos sequer para prestar os esclarecimentos e a orientação adequada
às mulheres. No caso de médicos, enfermeiros e outros profissionais da
saúde, a pena de prisão pode ser de 5 a 10 anos; e de 4 a 8 anos para
quem “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar
aborto, induzir ou instigar gestante a usar substância ou objeto
abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto, ou
prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique”.[2]
Política pública vira questão de “consciência”
Outra mudança muito importante no Projeto
é que ele inclui a questão da “objeção de consciência”. Pelo projeto, o
profissional que for contra a aborto, por questões religiosas, por
exemplo, pode se isentar de fazê-lo mesmo em casos previstos em lei.
Isso significa que será o profissional de saúde que, no limite, vai
decidir, não por questões de práticas em saúde ou pareceres técnicos,
mas pela sua compreensão subjetiva, pessoal, sobre o tema. Essa mudança
atenta diretamente contra a laicidade do Estado, pois transforma a
política pública em uma questão de fé individual.
Mesmo hoje, dentro dos casos em que o
aborto é legalmente permitido, não é fácil encontrar atendimento em rede
pública, e são poucos os centros de referência, como o Hospital Pérola
Byington, em São Paulo, ficando as mulheres numa espera longa e difícil.
Por exemplo, a gravidez de anencéfalos é considerada de alto risco
porque o feto fica em posição anormal e há o perigo de acúmulo de
líquido no útero, descolamento da placenta e hemorragia. E não há
perspectivas de longa sobrevivência para o feto, que em muitos casos
morre durante a gestação. Por mais que o aborto neste caso seja
previsto, ainda há desinformações, e inúmeros profissionais alegam
razões de foro íntimo para recusar o atendimento. Para dificultar ainda
mais, o PL 5069/2013 vai garantir a esses profissionais, que já têm uma
conduta antiética hoje, a alegação do “direito de consciência”.
O PL abre caminho para medidas cada vez piores
Atualmente há 15 projetos relacionados ao
tema do aborto na Câmara dos deputados. Dentre eles, 13 visam a maior
criminalização das mulheres, e apenas dois projetos, que não conseguem
transitar, apresentam medidas progressistas em relação ao tema.[3]
Eduardo Cunha também é autor do PL 1545/2011, que prevê pena de 6 a 20
anos para o médico que realiza aborto, além da cassação do registro
profissional.[4]
O PL 7443/2006 transforma o aborto em
crime hediondo; e o PL 6033/13 revoga completamente a Lei 12.845/2013,
aquela que garante o atendimento integral. O PL 1035/1991 e o PL
2423/1989, tipificam e criminalizam o aborto como “crime de tortura”
(!).
O PL 5166/2005, de Hidekazu Takayama (PSC-PR), determina como crime
a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável.
O PL 1413/2007, de Luiz Bassuma (PEN-BA), proíbe a distribuição, a
recomendação pelo SUS e a comercialização pelas farmácias da pílula do
dia seguinte. Bassuna é também autor do Estatuto do Nascituro (PL
478/2007), que proíbe o aborto mesmo em caso de estupro, e ao qual estão
apensados projetos de lei que prevêem pena de detenção de um a três
anos para quem realizar pesquisa com célula-tronco (PL 489/2007); e
concedem pensão à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez
decorrente de estupro (PL 3748/2008) – o ultraje às mulheres conhecido
como “bolsa-estupro”. Muitos desses estão arquivados, mas com a
velocidade que Cunha consegue “desarquivá-los”, como fez com o PL 4330,
da terceirização, não há dúvida que a sanha misógina continuará solta no
Congresso.
Além disso, ainda há a Proposta de Emenda
à Constituição (PEC) 164/2012, que diz que a inviolabilidade do direito
à vida é garantia de todos “desde a concepção”, incluindo, portanto, o
feto – e cuja aprovação tornaria essa concepção obscurantista parte da
própria Constituição.
Ficam os direitos das mulheres e a
questão de saúde pública de lado, diante de argumentos religiosos e
obscurantistas. As sessões que os discutem são recheadas de citações
bíblicas, com deputados se dizendo “guiados por Deus”, com “a Bíblia
como Constituição” e taxando todos os que se opõem como “mercadores da
morte”, “assassinos” e, curiosamente, “infanticidas”. Supostamente
ungidos pela mão divina para defender “a vida”, eles selam o destino
mortífero de milhões de mulheres, cruelmente acusando-as de “não se
responsabilizarem pelo que fizeram”.
A alegação de Cunha é hilária, se não fosse trágica
A alegação apresentada por Eduardo Cunha
para aprovar o PL 5069/2013, é que a prática de aborto é um “plano dos
Estados Unidos” e dos “supercapitalistas”, para quem as feministas fazem
o “trabalho sujo”. Além de insultar o movimento de mulheres e pisar na
luta por direitos sexuais e reprodutivos, Cunha e seus asseclas
“esquecem” que os abortos acontecem com ou sem lei, e que são as
mulheres pobres que morrem em sua ampla maioria por conta da
ilegalidade. A justificativa escrita por Cunha para o projeto é uma
verdadeira peça de ficção. Utilizando uma noção conspiracionista típica
da extrema-direita cristã nos EUA, profundamente misógina, Cunha chegou a
afirmar que “a legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo
por organizações internacionais (…) financiadas por fundações
norte-americanas ligadas a interesses supercapitalistas”, com objetivo
de promover “controle populacional”.[5]Hahaha.
A palavra “hipocrisia” é leve para a
estapafúrdia alegação de Cunha de que o aborto está a serviço do “grande
capital”, quando, além de afogado em denúncias de corrupção, ele está à
frente dos interesses de “supercapitalistas” como aqueles que
financiaram sua campanha, onde encontramos empresas como Ambev, Bradesco
Saúde, Santander, BTG Pactual, Vale, a Telemont, entre diversas outras,
que juntos lhe propiciaram declarados 6,8 milhões de reais em sua
última campanha.[6]
A Bradesco Saúde, aliás, está entre as cinco empresas que mais
financiaram a campanha de 214 deputados que acompanharam Eduardo Cunha
em votações emblemáticas, como a das terceirizações, do financiamento de
campanha eleitoral e da redução da maioridade penal, tendo somado a
eles cerca de R$4 milhões. Não por acaso Cunha vetou a CPI dos planos de
saúde, a despeito de haver o número de assinaturas necessárias para sua
instalação.[7]
O que Cunha pretende com esse tipo de “denúncia” é justamente esconder
os interesses que ele está defendendo na sua agenda parlamentar – que,
ao que tudo indica, usa o calendário ao contrário.
Subnotificada, a realidade é pior do que mostram os números; com a aprovação do PL, será ainda pior
Os números impressionam. Segundo o estudo
“Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões”,
de 2010, o número de abortos induzidos é quatro ou cinco vezes maior do
que o de internações, constituindo um dos maiores causadores de morte
materna no Brasil, sem contar com as complicações decorrentes. O número
estimado de abortos realizados no Brasil, em 2013, está entre 685.334 a
856.668. Segundo os autores, uma a cada cinco mulheres com mais de 40
anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. O que significa que pelo
menos 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto na
vida.[8]
Os números são imprecisos, e a tendência a
serem subestimados, principalmente pelo motivo da criminalização, é
enorme. Números à parte, todos nós conhecemos mulheres, de todas as
religiões ou de nenhuma, que já se viram na terrível situação de uma
gravidez indesejada; mães, irmãs, primas, colegas de escola ou de
trabalho, todos nós conhecemos casos os mais diversos. É a vida delas
que está em jogo.
A situação dos países nos quais o aborto
foi completamente criminalizado é catastrófica. Na Nicarágua, por
exemplo, país campeão no que se trata de mortalidade materna na América
Latina, calcula-se que “30 mil mulheres [numa população de 7
milhões] poderiam ter se salvado se o país tivesse aplicado o aborto
terapêutico da forma correta”.[9] O
caso da jovem Jyoti Singh Pandey, 23 anos, na Índia, espancada e
estuprada por 6 homens, vindo a falecer duas semanas depois, devido à
bárbara agressão sofrida, correu o mundo. Enquanto os protestos por
conta do crime tomavam as ruas do país, mais um caso grave vinha a
público: uma adolescente suicidou-se porque, além de não prenderem seus
estupradores, tentaram fazê-la retirar a queixa, e até mesmo casar-se
com um de seus algozes. A cultura do estupro é alicerçada na
culpabilização da vítima e no fato de não haver punições na maioria dos
casos. Mas isso não é uma coisa apenas de países como Índia ou
islâmicos; no Brasil, a violência é cotidiana e, se aprovadas essas leis
retrógradas, é possível que em não muito tempo tenhamos, por aqui,
cenários comparáveis aos da Índia e da Nicarágua.
O conservadorismo não pode nos calar!
O PL 5069/2013 significa um enorme
retrocesso para as mulheres. A bandeira democrática da legalização do
aborto, vista sob o viés da saúde pública e do direito a decidir sobre
seus corpos e sua sexualidade, se mostra mais do que nunca necessária.
Mas o cenário nacional é assustador, pois ao mesmo tempo em que
observamos mudanças retrógadas nas leis, há um ataque por parte do
Congresso e do Governo Federal, que atinge os direitos trabalhistas e o
fundo público. As medidas conservadoras se coadunam com o ajuste fiscal e
a Agenda Brasil, a qual, por sua vez, agravará dramaticamente o
problema do direito universal à saúde no país. A legislação mais
conservadora e a falta de acesso à saúde pública vitimizam em sua ampla
maioria as mulheres das camadas mais pobres, as mulheres trabalhadoras,
especialmente aquelas em posição social mais precária. Impedir esse
retrocesso é uma tarefa urgente.
Notas
[1]
Na lei atual, somente quem realiza o aborto e quem participa
diretamente da profilaxia está sujeito a penalidades, nos casos de
abortos não previstos em lei.
[2] O projeto, os substitutivos e o relatório da CCJ podem ser encontrados em: http://bit.ly/1GINo8T.
[3]
Trata-se do PL 176/1995, que propõe a legalização do aborto sem
restrições (na idade gestacional de até 90 dias) e que a rede hospitalar
pública e conveniada seja obrigada a proceder ao aborto mediante
simples manifestação de vontade da interessada; e o PL 7633/2014,
apresentado pelo Dep. Jean Wyllys (PSOL-RJ), que dispõe sobre a
humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo
gravídico-puerperal e prevê o atendimento de pacientes que abortam na
rede de saúde pública.
[4] Atualmente, a pena pode ser de 3 anos, só em caso de morte a prisão máxima é de 20 anos.
[5] SCHREIBER, Mariana. “A polêmica tese de Cunha contra o aborto: ‘atende a interesses supercapitalistas’.” BBC Brasil, 26 out.. http://bbc.in/1M10U8m.
[6] A lista completa está disponível em: http://bit.ly/1MTnf40.
[7]
Cunha também aprovou a Emenda Constitucional (EC) 86/15, conhecida como
emenda do orçamento impositivo, que obriga o Executivo a cumprir as
emendas parlamentares ao Orçamento até o limite de 1,2% da receita
corrente líquida realizada no ano anterior. Essa Emenda, segundo os
especialistas, além de continuar o subfinanciamento do SUS, dá poder ao
legislativo de “apresentar as formas e os destinos de aplicação desses
investimentos, reduzindo assim a autonomia do Ministério da Saúde na
condução das políticas públicas e na estruturação do SUS”. Fonte: http://bit.ly/1PUcjs5.
[8] Mais dados sobre o estudo podem ser encontrados em. http://bit.ly/1kRhCwP. Os casos de abortos legais (por estupro, ameaças à saúde e anencefalia fetal) contabilizaram em 2014 apenas 1.523 casos.
[9] Dados divulgados pela professora nicaraguense María Teresa Blandón. Ver http://bit.ly/1ihgrVx.