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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

PL 5069/2013: um retrocesso histórico para as mulheres brasileiras. Por: Tatianny Araújo e Rejane Hoeveler

Texto escrito pelas companheiras Tatianny Araújo e Rejane Hoeveler para o Blog Junho
Disponível no link : http://goo.gl/KqEnXr

 
Na mesma semana em que víamos, chocados, diversos homens adultos assediando uma menina de 12 anos nas redes sociais, em mais um exemplo da cultura de estupro enraizada em nosso país, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovava, por 37 votos contra 14, o Projeto de Lei (PL) 5069/2013, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que altera o entendimento sobre o que se considera violência sexual. O projeto, encaminhado ao plenário na Câmara, muda a legislação sobre o tema, que desde 1940 permite o aborto em caso de estupro, e aumenta consideravelmente a criminalização da prática do aborto, negando às mulheres não apenas o direito a decidir sobre seu corpo, como também o direito humano básico a receber atendimento e orientação dos profissionais da saúde.

A pílula do dia seguinte e a proibição de atendimento às mulheres na rede pública

Hoje, a pílula do dia seguinte pode ser encontrada em farmácias e usada para profilaxia da gravidez, evitando assim, gravidez indesejada, seja pelo sexo consentido ou não. O projeto de lei prevê maior controle por parte do Estado de substâncias tidas como abortivas, e, embora ainda não preveja diretamente a proibição completa do uso da pílula do dia seguinte, obriga a que ela só seja indicada em casos comprovados de estupro, isto é, depois que a mulher fizer notificação policial e exame de corpo delito.

Como a lei 12.845/2013 garante atendimento integral no SUS, elas hoje podem ir diretamente à uma rede de atendimento médico público, onde lhe é garantido a pílula do dia seguinte, exames de doenças sexualmente transmissíveis, orientação e cuidados. Não é preciso comprovar via notificação à polícia a violência sexual para ter garantia de atendimento. Devido à responsabilização da vítima, ao péssimo atendimento e humilhações, muitas vezes à falta de apoio da família, no caso das meninas e adolescentes, e também à realidade de que muitas vezes nada acontece com os agressores, muitas mulheres não denunciam a violência sexual sofrida.

O bom atendimento – que não é garantido em toda rede SUS do país, e isto já é um entrave – aumenta em muito as chances da vítima a se sentir pronta para a denúncia. Se isso se inverte, é evidente que teremos um número ainda maior de casos desconhecidos e, muito provavelmente, a ampliação da violência sexual contra a mulher, pois os agressores terão aumentada a certeza de que poucos serão denunciados. A maior parte das mulheres que sofrem violência sexual são meninas e jovens, vítimas de seus próprios familiares, na maioria dos casos. Elas não denunciam, e, com isso, estarão impedidas de evitar gravidez ou abortarem quando grávidas de seus algozes.

O PL obriga que o Boletim de Ocorrência (B.O.) e o exame de corpo de delito sejam obrigatórios para que a mulher possa ser atendida no SUS. Assim, exige-se como primeiro passo aquilo que deveria ser o último, pois é sabido que a mulher precisa se sentir segura, receber um bom atendimento, que seja humanizado e com equipe multidisciplinar, para se encorajar a fazer a denúncia. Ou seja, aquela mulher, menina ou adolescente que foi violentada, e que está extremamente vulnerável emocionalmente, terá que “provar” que foi violentada, encarando um exame de corpo de delito (numa delegacia que frequentemente não a acolhe devidamente), para, quem sabe, ter algum atendimento médico…

Maior criminalização, em especial dos profissionais de saúde

Com o projeto, as penalidades relativas à prática do aborto aumentam significativamente. “Induzimento, instigação, orientação ou auxílio ao aborto” são tipificados como crime penal. Além disso, há mudanças profundas no que tange o acesso à informação. O projeto prevê que ninguém possa dar informações às mulheres, mesmo quando é sabido que ela irá fazer o aborto de qualquer forma, fazendo com que qualquer informação vire delito, seja ela feita por profissionais de saúde, movimento de mulheres, amigas…todos agora passam a ser tipificados a ponto de sofrer penalidades![1] Isso causará, imediatamente, um aumento exponencial de problemas decorrentes de abortamento clandestino, que já são alarmantes.

Para os profissionais de saúde as penas serão maiores, fazendo com que não se possa contar com os agentes públicos sequer para prestar os esclarecimentos e a orientação adequada às mulheres. No caso de médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde, a pena de prisão pode ser de 5 a 10 anos; e de 4 a 8 anos para quem “anunciar processo, substância ou objeto destinado a provocar aborto, induzir ou instigar gestante a usar substância ou objeto abortivo, instruir ou orientar gestante sobre como praticar aborto, ou prestar-lhe qualquer auxílio para que o pratique”.[2]

Política pública vira questão de “consciência”

Outra mudança muito importante no Projeto é que ele inclui a questão da “objeção de consciência”. Pelo projeto, o profissional que for contra a aborto, por questões religiosas, por exemplo, pode se isentar de fazê-lo mesmo em casos previstos em lei. Isso significa que será o profissional de saúde que, no limite, vai decidir, não por questões de práticas em saúde ou pareceres técnicos, mas pela sua compreensão subjetiva, pessoal, sobre o tema. Essa mudança atenta diretamente contra a laicidade do Estado, pois transforma a política pública em uma questão de fé individual.

Mesmo hoje, dentro dos casos em que o aborto é legalmente permitido, não é fácil encontrar atendimento em rede pública, e são poucos os centros de referência, como o Hospital Pérola Byington, em São Paulo, ficando as mulheres numa espera longa e difícil. Por exemplo, a gravidez de anencéfalos é considerada de alto risco porque o feto fica em posição anormal e há o perigo de acúmulo de líquido no útero, descolamento da placenta e hemorragia. E não há perspectivas de longa sobrevivência para o feto, que em muitos casos morre durante a gestação. Por mais que o aborto neste caso seja previsto, ainda há desinformações, e inúmeros profissionais alegam razões de foro íntimo para recusar o atendimento. Para dificultar ainda mais, o PL 5069/2013 vai garantir a esses profissionais, que já têm uma conduta antiética hoje, a alegação do “direito de consciência”.

O PL abre caminho para medidas cada vez piores

Atualmente há 15 projetos relacionados ao tema do aborto na Câmara dos deputados. Dentre eles, 13 visam a maior criminalização das mulheres, e apenas dois projetos, que não conseguem transitar, apresentam medidas progressistas em relação ao tema.[3] Eduardo Cunha também é autor do PL 1545/2011, que prevê pena de 6 a 20 anos para o médico que realiza aborto, além da cassação do registro profissional.[4]

O PL 7443/2006 transforma o aborto em crime hediondo; e o PL 6033/13 revoga completamente a Lei 12.845/2013, aquela que garante o atendimento integral. O PL 1035/1991 e o PL 2423/1989, tipificam e criminalizam o aborto como “crime de tortura” (!). 
O PL 5166/2005, de Hidekazu Takayama (PSC-PR), determina como crime a antecipação terapêutica de parto de feto anencefálico ou inviável. O PL 1413/2007, de Luiz Bassuma (PEN-BA), proíbe a distribuição, a recomendação pelo SUS e a comercialização pelas farmácias da pílula do dia seguinte. Bassuna é também autor do Estatuto do Nascituro (PL 478/2007), que proíbe o aborto mesmo em caso de estupro, e ao qual estão apensados projetos de lei que prevêem pena de detenção de um a três anos para quem realizar pesquisa com célula-tronco (PL 489/2007); e concedem pensão à mãe que mantenha a criança nascida de gravidez decorrente de estupro (PL 3748/2008) – o ultraje às mulheres conhecido como “bolsa-estupro”. Muitos desses estão arquivados, mas com a velocidade que Cunha consegue “desarquivá-los”, como fez com o PL 4330, da terceirização, não há dúvida que a sanha misógina continuará solta no Congresso.

Além disso, ainda há a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 164/2012, que diz que a inviolabilidade do direito à vida é garantia de todos “desde a concepção”, incluindo, portanto, o feto – e cuja aprovação tornaria essa concepção obscurantista parte da própria Constituição.
Ficam os direitos das mulheres e a questão de saúde pública de lado, diante de argumentos religiosos e obscurantistas. As sessões que os discutem são recheadas de citações bíblicas, com deputados se dizendo “guiados por Deus”, com “a Bíblia como Constituição” e taxando todos os que se opõem como “mercadores da morte”, “assassinos” e, curiosamente, “infanticidas”. Supostamente ungidos pela mão divina para defender “a vida”, eles selam o destino mortífero de milhões de mulheres, cruelmente acusando-as de “não se responsabilizarem pelo que fizeram”.

 A alegação de Cunha é hilária, se não fosse trágica

A alegação apresentada por Eduardo Cunha para aprovar o PL 5069/2013, é que a prática de aborto é um “plano dos Estados Unidos” e dos “supercapitalistas”, para quem as feministas fazem o “trabalho sujo”. Além de insultar o movimento de mulheres e pisar na luta por direitos sexuais e reprodutivos, Cunha e seus asseclas “esquecem” que os abortos acontecem com ou sem lei, e que são as mulheres pobres que morrem em sua ampla maioria por conta da ilegalidade. A justificativa escrita por Cunha para o projeto é uma verdadeira peça de ficção. Utilizando uma noção conspiracionista típica da extrema-direita cristã nos EUA, profundamente misógina, Cunha chegou a afirmar que “a legalização do aborto vem sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais (…) financiadas por fundações norte-americanas ligadas a interesses supercapitalistas”, com objetivo de promover “controle populacional”.[5]Hahaha.

A palavra “hipocrisia” é leve para a estapafúrdia alegação de Cunha de que o aborto está a serviço do “grande capital”, quando, além de afogado em denúncias de corrupção, ele está à frente dos interesses de “supercapitalistas” como aqueles que financiaram sua campanha, onde encontramos empresas como Ambev, Bradesco Saúde, Santander, BTG Pactual, Vale, a Telemont, entre diversas outras, que juntos lhe propiciaram declarados 6,8 milhões de reais em sua última campanha.[6] A Bradesco Saúde, aliás, está entre as cinco empresas que mais financiaram a campanha de 214 deputados que acompanharam Eduardo Cunha em votações emblemáticas, como a das terceirizações, do financiamento de campanha eleitoral e da redução da maioridade penal, tendo somado a eles cerca de R$4 milhões. Não por acaso Cunha vetou a CPI dos planos de saúde, a despeito de haver o número de assinaturas necessárias para sua instalação.[7] O que Cunha pretende com esse tipo de “denúncia” é justamente esconder os interesses que ele está defendendo na sua agenda parlamentar – que, ao que tudo indica, usa o calendário ao contrário.

Subnotificada, a realidade é pior do que mostram os números; com a aprovação do PL, será ainda pior

Os números impressionam. Segundo o estudo “Magnitude do abortamento induzido por faixa etária e grandes regiões”, de 2010, o número de abortos induzidos é quatro ou cinco vezes maior do que o de internações, constituindo um dos maiores causadores de morte materna no Brasil, sem contar com as complicações decorrentes. O número estimado de abortos realizados no Brasil, em 2013, está entre 685.334 a 856.668. Segundo os autores, uma a cada cinco mulheres com mais de 40 anos já fizeram, pelo menos, um aborto na vida. O que significa que pelo menos 7,4 milhões de brasileiras já fizeram pelo menos um aborto na vida.[8]

Os números são imprecisos, e a tendência a serem subestimados, principalmente pelo motivo da criminalização, é enorme. Números à parte, todos nós conhecemos mulheres, de todas as religiões ou de nenhuma, que já se viram na terrível situação de uma gravidez indesejada; mães, irmãs, primas, colegas de escola ou de trabalho, todos nós conhecemos casos os mais diversos. É a vida delas que está em jogo.

A situação dos países nos quais o aborto foi completamente criminalizado é catastrófica. Na Nicarágua, por exemplo, país campeão no que se trata de mortalidade materna na América Latina, calcula-se que “30 mil mulheres [numa população de 7 milhões] poderiam ter se salvado se o país tivesse aplicado o aborto terapêutico da forma correta”.[9] O caso da jovem Jyoti Singh Pandey, 23 anos, na Índia, espancada e estuprada por 6 homens, vindo a falecer duas semanas depois, devido à bárbara agressão sofrida, correu o mundo. Enquanto os protestos por conta do crime tomavam as ruas do país, mais um caso grave vinha a público: uma adolescente suicidou-se porque, além de não prenderem seus estupradores, tentaram fazê-la retirar a queixa, e até mesmo casar-se com um de seus algozes. A cultura do estupro é alicerçada na culpabilização da vítima e no fato de não haver punições na maioria dos casos. Mas isso não é uma coisa apenas de países como Índia ou islâmicos; no Brasil, a violência é cotidiana e, se aprovadas essas leis retrógradas, é possível que em não muito tempo tenhamos, por aqui, cenários comparáveis aos da Índia e da Nicarágua.

O conservadorismo não pode nos calar!

O PL 5069/2013 significa um enorme retrocesso para as mulheres. A bandeira democrática da legalização do aborto, vista sob o viés da saúde pública e do direito a decidir sobre seus corpos e sua sexualidade, se mostra mais do que nunca necessária. Mas o cenário nacional é assustador, pois ao mesmo tempo em que observamos mudanças retrógadas nas leis, há um ataque por parte do Congresso e do Governo Federal, que atinge os direitos trabalhistas e o fundo público. As medidas conservadoras se coadunam com o ajuste fiscal e a Agenda Brasil, a qual, por sua vez, agravará dramaticamente o problema do direito universal à saúde no país. A legislação mais conservadora e a falta de acesso à saúde pública vitimizam em sua ampla maioria as mulheres das camadas mais pobres, as mulheres trabalhadoras, especialmente aquelas em posição social mais precária. Impedir esse retrocesso é uma tarefa urgente.

Notas

[1] Na lei atual, somente quem realiza o aborto e quem participa diretamente da profilaxia está sujeito a penalidades, nos casos de abortos não previstos em lei.

[2] O projeto, os substitutivos e o relatório da CCJ podem ser encontrados em: http://bit.ly/1GINo8T.

[3] Trata-se do PL 176/1995, que propõe a legalização do aborto sem restrições (na idade gestacional de até 90 dias) e que a rede hospitalar pública e conveniada seja obrigada a proceder ao aborto mediante simples manifestação de vontade da interessada; e o PL 7633/2014, apresentado pelo Dep. Jean Wyllys (PSOL-RJ), que dispõe sobre a humanização da assistência à mulher e ao neonato durante o ciclo gravídico-puerperal e prevê o atendimento de pacientes que abortam na rede de saúde pública.

[4] Atualmente, a pena pode ser de 3 anos, só em caso de morte a prisão máxima é de 20 anos.

[5] SCHREIBER, Mariana. “A polêmica tese de Cunha contra o aborto: ‘atende a interesses supercapitalistas’.” BBC Brasil, 26 out.. http://bbc.in/1M10U8m.

[6] A lista completa está disponível em: http://bit.ly/1MTnf40.

[7] Cunha também aprovou a Emenda Constitucional (EC) 86/15, conhecida como emenda do orçamento impositivo, que obriga o Executivo a cumprir as emendas parlamentares ao Orçamento até o limite de 1,2% da receita corrente líquida realizada no ano anterior. Essa Emenda, segundo os especialistas, além de continuar o subfinanciamento do SUS, dá poder ao legislativo de “apresentar as formas e os destinos de aplicação desses investimentos, reduzindo assim a autonomia do Ministério da Saúde na condução das políticas públicas e na estruturação do SUS”. Fonte: http://bit.ly/1PUcjs5.

[8] Mais dados sobre o estudo podem ser encontrados em. http://bit.ly/1kRhCwP. Os casos de abortos legais (por estupro, ameaças à saúde e anencefalia fetal) contabilizaram em 2014 apenas 1.523 casos.

[9] Dados divulgados pela professora nicaraguense María Teresa Blandón. Ver http://bit.ly/1ihgrVx.